15 de jul. de 2010

O que já dói.

"Ai miserável de mim e infeliz!
Apurar, ó céus, pretendo,já que me tratais assim,que delito cometi contra vós outros, nascendo; que, se nasci, já entendo qual delito hei cometido: bastante causa há servido vossa justiça e rigor,pois que o delito maior do homem é ter nascido.
E só quisera saber,para apurar males meus deixando de parte, ó céus,o delito de nascer,em que vos pude ofender por me castigardes mais?
Não nasceram os demais?
Pois se eles também nasceram,que privilégios tiveram como eu não gozei jamais?
Nasce a ave, e com as graças que lhe dão beleza suma,apenas é flor de pluma,ou ramalhete com asas,quando as etéreas plagas corta com velocidade,negando-se à piedade do ninho que deixa em calma:
só eu, que tenho mais alma,tenho menos liberdade?
Nasce a fera, e com a pele que desenham manchas belas,apenas signo é de estrelas graças ao douto pincel,quando atrevida e cruel,a humana necessidade lhe ensina a ter crueldade, monstro de seu labirinto:
só eu, com melhor instinto,tenho menos liberdade?
Nasce o peixe, e não respira, aborto de ovas e lamas,e apenas baixel de escamas por sobre as ondas se mira, quando a toda a parte gira, num medir da imensidade coisa tanta capacidade que lhe dá o centro frio:
só eu, com mais alvedrio, tenho menos liberdade?
Nasce o arroio, uma cobra que entre as flores se desata, e apenas, sepente de prata, por entre as flores se desdobra, já, cantor, celebra a obra da natura em piedade que lhe dá a majestade do campo aberto à descida:
só eu que tenho mais vida,tenho menos liberdade?
Em chegando a esta paixão um vulcão, um Etna feito,quisera arrancar do peito pedaços do coração. Que lei, justiça, ou razão,nega aos homens - ó céu grave!
privilégio tão suave,exceção tão principal,que Deus a deu a um
cristal,ao peixe, à fera, e a uma ave?"
- LA VIDA ES SUEÑO, Ato I, Cena I - de Pedro Calderón de la Barca

Só eu, que tenho mais amor, tenho menos liberdade?
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